quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Por dentro do Parque Nacional do Cabo Orange


Pedro Cunha Menezes


A estrada entre Macapá e Oiapoque, no Amapá, está contemplada em um dos corredores de desenvolvimento integrado da América do Sul. Planeja-se asfaltá-la até a fronteira e conectá-la com a Guiana Francesa por meio de uma ponte sobre o Oiapoque. Enquanto isso não acontece ainda é preciso comer muita poeira até o ponto que já foi conhecido como extremo norte do Brasil[1]. Oiapoque é uma agitada vila garimpeira. Tem muitas lojas, restaurantes, vida noturna, algumas agências bancárias e a sede do Parque Nacional do Cabo Orange. Ali dão expediente quatro funcionários de outra tropa do mesmo exército de Brancaleone também integrado por Christoph Jaster, chefe do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, e sua equipe.

Localizado no extremo norte do Brasil, o Cabo Orange é um dos primeiros parques nacionais da Amazônia brasileira. Possui mangues, campos inundáveis e limpos, florestas inundáveis e de terra firme. Além disso, é dono de sítios arqueológicos e de ecossistemas marinhos.
Fonte: WWF-Brasil

O chefe do Parque Nacional do Cabo Orange, Ricardo Motta Pires, sua sub-chefe Kelly Bonach e os técnicos Paulo Silvestro e Ivan Vasconcelos me receberam com entusiasmo contagiante. Parecem polvos cujos muitos tentáculos são capazes de executar diferentes tarefas ao mesmo tempo. Infelizmente, contudo, mesmo com milhões de braços e muita boa vontade, não há como quatro pessoas cuidarem de 619 mil hectares. É humanamente (e polvamente) impossível.

Mesmo assim eles tentam. Graças a seus esforços, o parque mantém exitosas atividades de fiscalização em parceria com a Polícia Federal e com a Marinha Francesa, está com um programa de cooperação em ecoturismo com agências de viagem de Caiena, dispõe de uma bem treinada e motivada equipe de brigadistas e tem um bonito programa de reprodução de quelônios, além de cooperação com o Parque Natural Regional da Guiana Francesa para pesquisa de onças pintadas.

No bojo desta última atividade, tive o privilégio de acompanhar um técnico e um pesquisador francês à parte da unidade de conservação ao longo das margens do rio Cassiporé. Nossa base foi a comunidade de Vila Velha. Para chegar até lá foi necessário percorrer três horas de carro mais três horas em lancha voadeira, em uma viagem coroada por belas paisagens, o que me deixou inebriado de felicidade.

Ao chegar na Vila Velha, contudo, comecei a viver um pequeno pesadelo pessoal. Quando estamos sentados em nossos escritórios confortáveis no sudeste do Brasil é fácil fazer a leitura dos problemas ambientais que afligem a Amazônia. Mais fácil ainda é despejar críticas e cobrar soluções. Mas ali, no meio do Amapá, isolado em um dos parques nacionais mais bonitos do Brasil, o buraco é mais embaixo.

Vila Velha tem cerca de 250 habitantes, cuja penúria monetária é quase total. Pouco dinheiro circula, mas não os chamaria de miseráveis. Vivem em outro tempo histórico. Plantam, pastoreiam, pescam e caçam, caçam muito! Só a caça e a pesca permitem que tenham uma dieta minimamente decente e digna. É o seu pão nosso de cada dia. Vivem ali há quase um século, sempre caçaram, faz parte de sua cultura. O problema é que essa cultura não é mais sustentável.


Vila Velha nem sempre teve 250 habitantes. À medida que o Estado brasileiro foi chegando ali, o povoado engordou. A saúde foi pioneira. Vacinas, prevenção profilática, noções básicas de higiene. A expectativa de vida respondeu à altura. Os velhos passaram a viver mais e as crianças a morrer menos. Enquanto isso, o desenvolvimento tecnológico chegou em forma de espingardas mais potentes, armadilhas melhores, lanchas rápidas. O duelo caçador-presa ficou mais desigual.

Na Vila Velha come-se de tudo: pássaros, calangos, cobras, mamíferos, até onças. Visito a casa de Dona Raquel, nascida e criada ali. Ela me fala com candura da caça. Conta as receitas, descreve texturas e sabores. Estala a língua de prazer quando esmiuça o modo de preparar paca. “O povo come até macaco, mas eu não, o bichinho parece gente”. Levanta-se e, alegre, me mostra o macaco-aranha que comprou como animal de estimação por R$ 40, “uma pequena fortuna”. Iraelson, outro morador, confirma que a caça ainda é comum na região, mas “quando o pessoal do Chico Mendes vem, a gente maneira”. Pergunto o que comem. Ele diz: “tudo, mas gostoso mesmo é paca, caititu e queixada. Eu também aprecio carne de veado”. “Mas onde está essa bicharada?”, pergunto eu, olhando em volta à procura de pássaros ou outro sinal de vida. Iraelson coça a cabeça e explica: “é que os animais estão cada vez mais longe da Vila. Aqui perto já não tem mais nada”.

Não é bem verdade. Ao cair da tarde vamos visitar seu Bené. Ele é o responsável local pelo Projeto Quelônios da Amazônia. Bené mostra prazer no que faz: “quando eu era pequeno isso aqui tinha muita tartaruga. Dava pra todo mundo e ainda sobrava. Hoje é que é essa desgraça. Se não fosse pelo pessoal do parque já tinha acabado aqui também. Veja só, do outro lado, onde o Projeto não está, já não tem mais nenhuma tartaruga”. O trabalho de Bené é simples. Ele patrulha as praias do rio e identifica locais onde as tartarugas puseram seus ovos. Antes que algum coletor venha desencavá-los para levá-los à panela, ele mesmo os retira dali e os leva para uma incubadora artesanal em Vila Velha. Garante assim a sobrevivência de uma nova geração de tartaruguinhas. Vou dormir rceonfortado com o trabalho de seu Bené.

Na manhã seguinte a dimensão da excepcionalidade representada por ele é reiterada pela vida real. Antes mesmo de sair com o pesquisador francês Benoit de Thoisy e o funcionário do parque para checar as câmeras colocadas para recensear a população de onças em um perímetro de 100 km² no interior do Cabo Orange, recebemos o anúncio de uma trajédia anunciada: seis câmeras (ao valor unitário de mil euros cada uma) haviam sido quebradas por vândalos. A explicação dada por Adalbertro Moraes, brigadista do Previ-fogo residente na comunidade, foi simples: “isso é gente que foi flagrada carregando caça. Para não ficarem registrados nas fotografias preferiram destruir o equipamento. Só não quebraram outras porque depois que o pessoal aprendeu onde estavam passou a desviar”. Benoit ficou inconsolável. Me chamou de lado e, um pouco confuso, perguntou: “mas não é proibido caçar no Brasil”?

Felizmente nem tudo são más notícias. Se o Estado brasileiro anda rarefeito na implementação das políticas de conservação, a educação começa a chegar aos cantos mais recônditos do território nacional. Em Vila Velha existem duas escolas. Uma primária e outra secundária. Os professores vêm em pares de Macapá e ficam em Vila Velha seis semanas seguidas. Dormem em um alojamento da Secretaria de Educação e dão toda a disciplina do semestre inteiro naquele período. Quando vão embora, são substituídos por outro par de mestres que fazem o mesmo para suas respectivas matérias. E assim segue o rodízio até que o currículo é todo passado aos alunos.

Walmira Santos Pereira Neta, professora de geografia, é aliada dos funcionários do parque. Em suas aulas enfatiza a importância do Projeto Quelônios e da relação sustentável com a mata. Tenta desestimular a caça. No momento está em uma cruzada para incutir maiores noções sanitárias entre os habitantes: “olha só o chão da Vila. É plástico para todo lado. Essa gente tem que aprender a viver de forma mais limpa”. Walmira tem razão. O solo da Vila Velha é marcado por detritos: sacos de plástico, garrafas PET e outros produtos não bio-degradáveis descartados após o uso formam a decoração de suas ruas.

Aproveito um final de tarde e vou visitar a escola. Chego no meio de uma festa de dia das crianças. Os professores projetaram um filme infantil que trouxeram de Macapá. No final, serviram bolo, suco e distribuíram presentes. São brinquedos e bonecas doados por lojistas de todo o estado. Os olhos da petizada, criada longe da cidade, dos shoppings e do consumo desenfreado, brilham. Avançam ansiosos sobre os brinquedos. Rasgam ávidos os embrulhos, destróem as embalagens. Terminada a distribuição, Walmira chama atenção de todos. Ameaça recolher os regalos e levá-los de volta a Macapá. Olha desaprovadora o chão coalhado de papel e lixo. Simula zanga. Funciona, a gurizada é veloz. Em minutos, o assoalho da escola está tinindo. O lixo está na lixeira. Walmira não deixa barato, continua a lição dizendo que quando voltar para o próximo módulo sonha em ver a Vila Velha toda limpa assim!

No que toca à caça, entretanto, a solução é mais complicada. Se for retirada do prato nosso de cada dia, como a Vila vai abastecer 250 estômagos? O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) planeja alternativas de emprego e renda sobretudo voltadas para atividades de turismo, mas a verdade é que, dadas a escassa infraestrutura atual e a dificuldade de acesso, trata-se de sonho longínquo.

Mas se vale sonhar, o sonho de Ricardo Mota Pires também merece crédito. Na parede de sua sala, Ricardo colou um poster de um hidroavião que, com a ajuda de truques gráficos de seu computador, decorou com as cores do ICMBio. É seu ideal de fiscalização. Enquanto não se materializa, o que sobra a esse dedicado funcionário é um barco que vive quebrado, três ajudantes motivados e uma parceria azeitada com a Polícia Federal. É muito, dadas as condições de trabalho que lhe foram oferecidas pelo Estado brasileiro. É pouco se levarmos em consideração as carências do Parque Nacional do Cabo Orange.

Quantos guardas-parques são necessários para assegurar a integridade de uma área protegida? A Federação Internacional de Guardas-Parques (International Ranger Federation) sustenta que a relação adequada é de um guarda-parque para cada bloco de dez mil hectares. A título de ilustração, dados publicados pela federação para alguns países centro-americanos de floresta densa similar à Amazônia, mostram, exceto para o caso hondurenho, proporções próximas à defendida: Guatemala: 1 para 7.363 ha; Panamá: 1 para 11.184 ha; Nicarágua: 1 para 12.526 ha e Honduras: 1 para 22.201 ha. Nos Estados Unidos essa relação é de 1 para 8.200 ha. No Cabo Orange a relação é de 1 para 150 mil hectares!


Então, se vale mesmo sonhar, ao deitar em minha rede para dormir sob o calor escaldante da noite vila-velhana também eu fecho os olhos e deixo minha mente divagar. Vejo o dia em que o Bolsa Família evolui para um programa de emprego de baixa qualificação para funcionários de campo nas Unidades de Conservação Brasileiras. Sonho também um ideal mais palpável, menos impossível. Um devaneio que incorpora soluções criativas e pouco ortodoxas, ainda que articuladas com políticas de Estado. A atividade de funcionários de campo (guardas-parque) não carece de grande especialização. Sua rotina é caracterizada por patrulhas de fiscalização, monitoramento da fauna, atendimento aos visitantes e trabalhos braçais como manutenção de trilhas e remoção de espécies exóticas. Nesse contexto, a necessidade de pessoal nas unidades de conservação na fronteira poderia ser suprida com jovens em idade de prestar serviço militar.

A própria Estratégia Nacional de Defesa, publicada pelo governo, deixa aberta as portas para a materialização de meus devaneios. Sua concretização garantiria o adensamento da presença institucional nas áreas protegidas brasileiras, asseguraria recursos humanos em quantidade suficiente para o manejo dessas parcelas do território nacional e melhoraria as condições de fiscalização e monitoramento de regiões do país que hoje sofrem de uma grande ausência. Também atenderia aos objetivos do setor militar cuja cartilha oficial propugna que “complementarmente ao Serviço Militar Obrigatório instituir-se-á Serviço Civil, de amplas proporções. Nele poderão ser progressivamente aproveitados os jovens brasileiros que não forem aproveitados no Serviço Militar. Nesse Serviço Civil, concebido como generalização das aspirações do Projeto Rondon – receberão os incorporados de acordo com suas qualificações e preferências, formação para poder participar de um trabalho social…Receberão também, os participantes do Serviço Civil, treinamento militar básico que lhes permita compor força de reserva, mobilizável em circunstâncias de necessidade. Serão catalogados, de acordo com suas habilitações, para eventual mobilização”.

Acordo um pouco mais otimista. Caminhamos seis horas em meio à selva densa, alternada por campos inundáveis e buritizais. Vamos checar as onze câmeras de Benoit que ainda estão intactas. No caminho, Iraelson pede mais fiscalização ao funcionário do parque que nos acompanha. Denuncia que traineiras de Belém do Pará e Macapá têm subido frequentemente o Cassiporé fazendo pesca de arrastão: “o pescado está começando a faltar. Vocês precisam nos ajudar!”.

Retiramos os filmes, colocamos novos. Retornamos ao rio. Tenho o privilégio de presenciar a pororoca. Não vou perder tempo tentando descrever o que só quem esteve lá será capaz de compreender. Posso apenas dizer que seu barulho é ensurdecedor, sua passagem inesquecível.

De volta à Vila, Benoit verifica os filmes. Eles revelam boas notícias. Registraram antas, quatis e... onças pintadas. Embora Vila Velha constitua-se em um impacto às suas bordas, o Parque Nacional do Cabo Orange ainda mostra-se capaz de albergar espécies de topo da cadeia alimentar.

Podemos comemorar e dormir tranquilos. Melhor, contudo, que esse sono não seja solto, nem em berço esplêndido, pois a inércia pode custar caro. Cabe ao governo brasileiro, em suas instâncias mais altas, zelar para que as instituições brasileiras com a missão constitucional de salvaguardar nossa natureza sejam dotadas dos meios humanos e materiais necessários para cumprir a tarefa que lhes foi atribuída. É bom lembrar que quem dorme sonha - mas que sonhos normalmente refletem a realidade do nosso dia a dia. Quando essa realidade é ruim e estressante, o que era bom e leve, logo transforma-se em pesadelos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário